quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O TREM

Lembro-me de que, desde muito jovem, costumava observar o trem surgindo a distância. Na cidadezinha onde vivia, havia uma visão privilegiada. Ao longe, avistava a composição gigantesca apontando no vão formado entre a vasta vegetação e uma longa montanha. E meu mundo parecia parar.
Timidamente, aparentando andar bem devagar, a locomotiva azul invadia a paisagem paralisada e seguia seu curso já conhecido, deslizando sobre os trilhos reluzentes e compondo uma obra sóbria mas eloquente. Um regalo gratuito ofertado pelas saudosas manhãs de outono. Aparecia, exibia sua imponência e beleza de deus olímpico e logo desaparecia por detrás da montanha.
Os longos vagões a seguiam, percorrendo o trajeto demarcado, e também logo sumiam, como a se esconder de mim. Fugiam da cena e me cortavam a respiração. Meu coração, de tão ávido, agora ficava apertado. Iniciava-se um intervalo com sabor de angústia, um prazer estranho . . . Um aperitivo do que a vida me traria tantas outras vezes, mais tarde, das formas mais inesperadas e até dramáticas. Impossível descrever.
Nesse instante, meus olhos corriam para o outro lado da tela. A montanha se estendia até a outra parte da cidade e era possível ver os trilhos brotando das pedras. De lá, esperava pelo renascimento daquele titã magnífico que me trazia gozo e temor. Alguns instantes - menos que um minuto - pareciam durar muito tempo. Uma odisseia particular. Um conto livre e aberto.
E pensava no que poderia estar acontecendo ali. Pessoas sentadas, gente andando, maquinistas, guardas ferroviários. Todos tornavam-se, de repente, personagens eventuais da minha narrativa secreta. A pequena história que haveria de trazê-lo à outra extremidade do meu quadro vivo.
Poderia não aparecer, caso algum comando errado o fizesse descarrilar. Talvez parasse simplesmente. Por que não? O que era certo, de fato? A chegada ao outro lado era tão inevitável quanto o sonho mais banal, mas havia naquele pedaço de mundo um recorte da vida real, onde eu já desconfiava que nada era absolutamente garantido.
E, de repente, sempre parecendo ser a primeira vez, meu coração contido se soltava e voltava à vida. Agora mais feliz, pois o gigante vencera as incertezas e os perigos da estrada,  e me acenava vitorioso. O herói cumprira mais uma vez o seu papel. O desequilíbrio se acabava e o mundo parecia voltar à normalidade. A máquina azul seguia a conduzir seu séquito, marchando novamente pelo cenário preciso que meu olhar captava e inventava.
Alguns metros após passar pela abertura na montanha, a locomotiva impávida me brindava com seu grito de vitória. Dois apitos estridentes e mágicos avisavam a gente da estação que estava chegando. Os personagens da minha epopeia certamente já estariam desfrutando de mais um daqueles momentos de folga vitoriosa que os finais felizes costumam trazer.
A mim, soava como a doce confirmação de que a vida continuava e o jogo diário da ousadia de querer vencer o obscuro valia a pena. O coração tinha mesmo de ficar apertado, pois o que vinha depois era sublime. Era a confirmação inequívoca de que os sabores  são sempre mais intensos para quem vive ávido e faminto de prazer.
E o trem desfilava, agora mais vagarosamente, aos poucos se acomodando na estação. De longe, sem pensar em mais nada, só queria mesmo poder voltar à rotina do meu dia. E a realidade, alimentada pelo sonho de um minuto, voltava a ter graça. Voltava a ser possível.