Dia
desses, por causa das chuvas, e principalmente pela falta de planejamento nos
últimos (quatrocentos e sessenta) anos em São Paulo, acabei parando num
barzinho justamente no momento em que deveria já estar chegando em casa. Ao
invés de ficar sem andar mais uma hora num mesmo quarteirão do centro da
cidade, decidi parar o carro e estacionar, também eu, num lugar muito
aconchegante e tranquilo de Santa Cecília. Apesar da imensa quantidade de água
que caia, a noite não se abalava e era possível sentir um pouco do antigo
charme com que fui seduzido, trinta anos atrás, quando cheguei, caipira e
idealista, nesta inexplicável mistura de dor e romantismo. Sentei-me numa
mesinha do lado de fora - na calçada - do bar e pedi um daqueles maravilhosos
sanduiches que misturam de tudo, o qual certamente deve estar nos índex de
todas as alas ortodoxas de qualquer religião. Delícia! Paz! Quer dizer, quase .
. .
O problema é que,
com tantas águas a rolar, os trovões eram inevitáveis. Águas tormentosas, raios
violentos. Noite a despejar romantismo, mas, nem por isso, imune à contundência
das descargas elétricas irrompendo por todas as partes. E, mesmo já possuindo
um treinamento de mais de meio século na arte da convivência com temporais, fui
atingido de surpresa por raios enviesados, de alta tensão e contumacíssimos. E
o pior de tudo: vindos da mesa ao meu lado.
"Errado é
certo", dizia firmemente um senhor de seus cinquenta anos a um outro, bem
mais velho, que estava em uma outra mesa. Ambos sozinhos, acabaram se
encontrando e iniciando um diálogo que acabava sendo compartilhado com muitos
de nós que ali estávamos. Mas, que história era aquela de "errado é
certo"?
Aos poucos, atento
que estava a todas as manifestações elétrico-explosivas da noite, fui
entendendo o teor da conversa e, obviamente, a estrutura conceitual daquela
frase. Observando, um pouco mais, as demais mesas do estabelecimento, orientado
principalmente pelos gestos acusatórios dos dois, acabei entendendo o que
acontecia. Aqueles dizeres, que acabaram se tornando um mantra por conta das
inúmeras repetições ao longo do diálogo, tinham como endereço uma outra mesa. Mais distante de todos nós, estavam cinco
garotas numa conversa animada e totalmente descontraída. E, de que diabos
falavam? Por que eram o alvo, afinal?
Na verdade, não se
sabia do que poderiam estar falando, dada a distância entre nós e elas. E de
que podem conversar jovens de seus 20 anos? Roupas, filmes, baladas, garotos,
garotas . . . O problema não era a temática de sua conversa. O problema eram
elas. Ficava quase que evidente, por conta dos cabelos com corte masculino de
duas delas, das roupas mais despojadas e das mãos unidas de outras duas, que
seriam, quase todas senão todas, homossexuais. Sim! Estavam sendo alvo de duas
metralhadoras implacáveis pelo simples fato de provavelmente não serem garotas
heterossexuais.
"Antigamente,
não havia disto", dizia o mais jovem, enquanto sorvia um refrigerante
light em lata. "Se você diz isso, imagine eu que já estou com 67 . .
.", emendava o outro. E continuava: "aqui perto, havia um restaurante
onde elas se encontravam e não incomodavam ninguém. Sabíamos que existiam, mas
não precisávamos ficar perto delas. As famílias iam aos lugares públicos sem
serem agredidas. Mas, hoje, está tudo diferente: tudo liberado. O respeito
ficou para trás".
"É isso!
Errado é certo! Tudo está invertido. É a natureza ao contrário. Não sei aonde
vamos parar!", continuava o sujeito que devia ter quase a minha idade. E,
quase que em tom de manifesto humanitário e redentor, sacramentou: "já
estou perdendo a minha paciência! Meu tempo de ser bonzinho já está se
esgotando!"
O que estaria
querendo dizer com isto? Era uma ameaça às moças - que, felizmente, nem sabiam
que estavam gerando tanta ira e virulência - ou a todos nós que estávamos ali,
e que nem teríamos notado a presença delas, não fossem os dois? Represália à
nossa insensibilidade? Seria um manifesto de combate e repúdio à tal sociedade
que, a seu ver, distorce e inverte os valores? Um apelo "democrático"
por uma sociedade mais justa, na qual o direito de não conviver com os
diferentes seria respeitado e priorizado? Talvez uma composição de tudo isso:
um solene basta a tudo aquilo que se contrapõe
às velhas certezas e aos absolutos que sempre tornaram a vida mais segura e
suave de ser vivida - pelo menos, para grande parte das pessoas.
No meu canto, entre
solidário às ingênuas meninas - que pareciam ignorar sua condição de ameaça
iminente à sobriedade civil - e confuso ante as ameaças do imponente guardião
da moral, comia já sem gosto e pensava em tantos alunos (que já tivera) e em
meus filhos, andarilhos da vida. O que estaria sendo reservado para eles? Estariam
seguros, hoje e nos próximos meses e anos? Não conseguia parar de pensar nas histórias
dos anos sessenta, trinta . . . Na "marcha da família com Deus pela liberdade",
nos clamores por ordem, nas ameaças comunistas e nas tantas "democracias
ao nosso modo", que tingiram de tristeza tanto tempo de nossa história.
Não pude deixar de
pensar que aquelas falas não estavam só ali. Já ouvira similares em festinhas
de três anos, em clássicos no Pacaembu, em rodas de amigos num bar qualquer da
vila Madalena, conversas do facebook e - nem quero pensar muito
- em sala de professores. Que diabos
será isso? A história vai e volta, vai e volta? Ou são novas farsas que nos enganam
a mente, a todo instante, se travestindo de antigas tragédias revividas e
vívidas? Quem seriam aqueles sujeitos? Espécimes raros, a serem levados para
acervo de algum museu, ou novos arautos de velhas verdades insepultas que
continuam a se impor e a encantar? Certamente, aquelas vozes e suas ideias não
eram só deles. Talvez, eu tenha sido um dos poucos, ou talvez o único, a se
incomodar com aquela conversa.
Quando saí dali,
não disse nada a eles. Afinal, falavam entre si. Não estavam incomodando. Caso
os molestasse, poderia até ser autuado por injúria ou coisa que o valha. E nem
havia o que lhes falar. Afinal, estavam apenas formatando o mundo que percebem,
e, com a melhor das intenções, querendo alguma paz, algum direito, sei lá. Ao
passar pelas moças, seus risos me acalmaram, e a vida parece ter brilhado em
algum ponto, por ali. Não sei se estava no próprio brilho ingênuo e festeiro de
seus sorrisos adolescentes. Ou, quem sabe, num sonho impossível qualquer,
próprio do jovem, que sempre insiste em se dizer possível. Com tanto absurdo,
estava quase em paz. Uma paz diferente: triste, mas arejada. Algo meio fora dos
padrões. Talvez fosse o "errado que se fazia certo", sei lá...
João Luiz Muzinatti