Um olhar despretensioso para certa cena do cotidiano; nada de novo; a vida sem grandes mistérios ou questionamentos. Bem, não exatamente! Um sinalizador que poderá passar despercebido e entrar para o rol das coisas sem importância, ou apenas engraçadinhas e curiosas para muita gente, mas não para mim. Já me disseram que sou encucado, estranho e até exagerado com tudo. Mas não importa: as coisas me acordam o tempo todo, me dão coices, me afagam, me afetam. E saio por aí falando, escrevendo, sonhando, alucinando. Afinal, que graça teria a vida se tudo fosse esperado, sem novidades ou – odeio essa palavra, mas lá vai – normal?
Bem, assim também poderei ser chamado de prolixo ou enrolador. Vou (quase) direto ao assunto. Minha netinha de dois meses na cama, com os dois cachorros da casa ao seu lado. Às vezes, lhe fazem carinhos lambidos, se encostam enquanto a percebem quieta, cheiram-na como a certificarem-se de que está bem e, o mais importante (para eles, eu acho), ameaçam atacar quem chega perto. Sim: tomam conta, literalmente, da bebezinha, a ponto de sua mãe ter de chegar de mansinho. Parecem não querer correr nenhum risco. A sua segurança é o que importa mais.
Bobagem? “Cães são assim mesmo”. “Eles têm o instinto do cuidado com os filhotes”. “A natureza é sábia”, e paremos por aqui, para que o leitor não fuja da conversa. Eu sei que isso pode ser, perfeitamente, mais um caso de se fazer colocações previsíveis e sem qualquer novidade. Mas, eu penso que podemos tirar mais dessa cena “banal”.
Acontece que esses seres ditos irracionais estão atuando mais diretamente em defesa da vida e da natureza do que nós, os sabichões do planeta. Vivendo no mesmo mundo que nós, reconhecem um filhote, identificam sua fragilidade e dependência, percebem como pode estar sujeito a ataques e perigos. Então, partem para sua defesa e seu cuidado. Não arriscam!
Sendo parte da natureza, a reconhecem e defendem o ser pequenino e frágil, pois este também faz parte do emaranhado de vida que os envolve. Sendo menos práticos e pragmáticos que seus parentes humanos, voltam-se à preservação do pedaço mais carente e importante da natureza com que se deparam e conseguem perceber: um ser vivo e frágil, um filhotinho, um pedaço do mundo lindo e aprazível no qual vivem e que, no momento, encontra-se vulnerável. São natureza defendendo natureza; vida defendendo vida.
Humanos matam humanos por razões que não são medo ou fome. Humanos torturam, expropriam, ofendem. Os nossos cãezinhos, não! Ao contrário, velam a vida, e a defendem com o que têm de melhor: seu tempo e sua coragem. De repente, a vida do ser frágil passa a ser o fato mais importante. O mais urgente. Talvez haja, nesses animais, algum instinto desconhecido de nossa inteligência, que esteja vinculado à perpetuação da vida – de todos. Enquanto nós humanos criamos deuses, carreiras promissoras ou eternidades vinculadas ao bem e ao mal, criações nossas de cada dia, esses irracionaizinhos devem trazer nos seus DNAs a busca da vida eterna sem dor, sem riscos e sem destruição. Repito: para todos os viventes, e principalmente os mais frágeis. Quem sabe não seja isso?
Uma reflexão aparentemente sem razão ou importância. Certamente uma bobagem ou, mais que isso, um desperdício de neurônios, os quais poderiam ser mais bem usados em empreendimentos rentáveis. Uma falha no reino da vida neoliberal. Pode ser. Porém, dentro da história as coisas vão acontecendo, acontecendo. Normalmente não as tiramos da banalidade, até que, um dia, percebemos seu valor e passamos a conhecer mais do mundo e de nós. Quem sabe? Quem sabe, nossa ação racional não necessite de um empurrãozinho de seres que sempre estiveram por aqui a nos mostrar caminhos de vida boa e digna; e nem percebemos. Ninguém me tira da cabeça que, nos seus latidos protetores, avisam os invasores que: “se se atreverem a destruir a vida, vão se ver conosco”! Quem sabe não podemos aprender alguma coisa mais com essa cena banal e engraçadinha?
João Luiz Muzinatti - abril/2023