quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A uns amigos


Um dia, um encontro

cheio de luzes, cores,

sem flores

ou dores . . .

A porta de um mundo

risonho, abusado,

quase ousado,

chapado . . .

até ser amado . . .

Uma lança afiada

a penetrar o nada

da vida andada,

estranhada,

pintada . . .

(em tela clara?

Sei lá! Que droga é o nada!)

Roeu de graça,

e quis ser graça

e fazer graça

(meio sem graça . . .),

feito traça,

comendo a massa,

lavando  a praça  . . .

- Que desgraça!

Mas, a prosa

e o tato:

fino trato!

E é fato:

estupefato

eu fiquei no ato!

Porém, às vezes, perco a calma.

Apesar de alma,

sou peito, palma,

ira que espalma . . .

É isso! Calma!

Mas, poetar e cantar,

“caetanear” . . .

isso lembra mar,

paisagem, pomar . . .

lembra vida a se cantar . . .

E me vestiram de cantor,

deram-me rimas, flor,

e, na surdina . . . amor!

Muito amor!

Quase não resisto: dor

virou cor,

e rotina, sabor.

Manhã ou tarde de qualquer dia

a beirar calmaria,

voavam em folia,

como a matar arrelias

e inventar ventanias

qual aroma que recria

ou frescor que sacia.

Quanto mundo foi criado

em discursos exaltados

ou até em papo furado,

não importa.

Deu, do mundo, o recado

nosso sonho partilhado.

Valeu!  Tá falado!

Hoje, o sol virou saudade

(e eu que falo em liberdade,

não escapo dessas grades

do destino . . . oh! crueldade

que é viver, pois amor que vem, invade,

abocanha sem piedade

e se vai só de ruindade).

Acabou-se esse momento,

o nosso momento.

Meu sopro, pensamento,

ânimo, acalento,

fica, agora, de momento,

esperando no lamento . . .

Minha turma bagunçada,

vai morar em cada estrada,

vai ficar, mesmo, guardada

em canto da morada

do meu sonho, na jornada . . .

Sem mais, valeu moçada!!

João

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O desconhecido



Ele andava pelo quarteirão como se não tivesse aonde ir. Chegava à esquina, disfarçava, olhava ao redor e voltava. Sabia que poderia estar sendo notado, e isso o preocupava um pouco, mas não tinha nenhuma intenção de desistir. Observava cada trecho percorrido como se fosse a primeira vez que por ali passava. Ao cruzar com as pessoas, invariavelmente olhava para o chão. Não encarava ninguém. Apenas seguia seu caminho: esquina a esquina, percorrendo não mais que cem metros.

Seu passo era lento e não parecia querer nada que não fosse andar. Já tinha idade bem avançada. Poderia estar fazendo uma dessas caminhadas saudáveis que talvez algum médico lhe houvesse indicado. Mas, nesse caso, não estava disposto a sair da redondeza. Não queria se ausentar daquele quarteirão. Poderia estar em situação muito grave de saúde e o risco de ficar longe de sua casa talvez não valesse a pena. Também naquela parte do bairro havia poucas pessoas, e, caso se aventurasse ao outro lado da avenida principal, certamente teria seu ritmo importunado por gente apressada que lhe obrigaria a desvios e paradas que não necessitava fazer ali onde estava.

Aos poucos, para um observador mais atento, ficava claro que diminuía (ainda mais) o passo quando se aproximava da pequena loja de roupas infantis que ficava perto do meio da quadra. Quase parava em frente à vitrine, observava fixamente alguma peça que se encontrava na parte baixa da mesma e, após um franzir de testa que indicava olhar mais atento a algum detalhe da roupa escolhida, voltava a andar mais rápido. E repetia tudo, novamente.

Já havia completado quase dez minutos dessa pequena maratona, quando decidiu contrariar aquela marcha e parou completamente em frente à vitrine.

Sem mais, tirou um papel e uma caneta do bolso da camisa e começou a anotar alguma coisa enquanto mirava as roupas expostas. Parecia estar copiando algo. Talvez o preço do que quer que fosse que havia lhe chamado à atenção. Entretanto, sua postura não era a de quem simplesmente escrevia preços. Olhava atentamente para o artigo eleito e seus movimentos eram cuidadosos demais para quem apenas registra preços no papel. Também havia um cuidado especial em ajeitar o papel sobre a coxa direita, levantada e apoiada sobre a parede ao lado da vitrine. Na verdade, parecia estar desenhando. Quase conseguia se manter estático e usava a mão esquerda em seu traçado.

Não me contive! Naquele momento, sem nenhum questionamento sobre o porquê de minha decisão, levantei-me da mesa do bar onde enrolava com minha xícara de café com leite, atravessei a rua e caminhei em direção à loja que ficava quase ali na frente. Bem menos cuidadoso ou discreto que o velho que rabiscava coisas, aproximei-me e parei perto dele.

Estava tão concentrado em seu trabalho que pareceu esquecer a preocupação inicial com o que as pessoas poderiam estar pensando dele. Não percebeu que parei bem atrás e observei o que colocava no papel.

Não foi difícil entender o que fazia. Com destreza e muita facilidade, copiava o rosto do pequeno manequim infantil que era usado para exibir uma camiseta que estava em oferta. Era uma figura do sexo masculino, que representava uma criança (um garotinho) de menos de seis anos. O velho o desenhava sem qualquer problema, ainda que a dificuldade em se posicionar fosse grande.

Tive condições, sem que ele o percebesse, de comparar o que se esboçava no papel com a figura da vitrine. Era perfeito! Seu traçado, simples e preciso, parecia transportar a imagem do garoto para aquela pequena folha de papel. Com a caneta azul barata, ele realizava um verdadeiro milagre. Jamais havia visto tamanha precisão numa cópia (desenhada) de algum objeto, antes.  Era, sem dúvida, um artista. Um maravilhoso e humilde gênio, que, num desses atalhos da vida, brotara à minha frente, gratuitamente.

De repente, senti um grande respeito por aquele velho desconhecido, que, até então, pensava tratar-se de um doente ou um maluco qualquer. Sua roupa simples e seu aspecto frugal me sugeriam que provavelmente tivera uma vida sem grandes realizações e certamente não era pessoa de posses. Apenas um artista. Um sujeito perdido pela rua, quase invisível, que era capaz de captar, da maneira mais desajeitada possível, alguma coisa perdida na paisagem e transportá-la maravilhosamente para o papel, para os sentidos e para a imaginação de qualquer um que observasse seu desenho.

- Olá, senhor! – não resisti e puxei conversa com o homem.

- Sim? – respondeu, entre surpreso e envergonhado.

- Não pude deixar de observar. O senhor desenha muito bem. Está perfeito! Como consegue copiar com tanta precisão?

- Bom...  Faço isto desde menino... É um passatempo. – foi dizendo isso enquanto dobrava o papel e o colocava de volta ao bolso, juntamente com a caneta.

- O senhor é um artista?

- Não! Sou aposentado. Trabalhei durante cinquenta anos na ferrovia. Comecei como ajudante e cheguei a mecânico. O desenho sempre foi para as horas vagas.

Quase sem perceber, ele ia abandonando nossa pequena conversação. Já se encaminhava para o lado da avenida larga quando fiz uma última pergunta.

- E por que o boneco da vitrine?

- Nada, não! Parece-se muito com um neto que perdi há cinco anos. Nunca tive uma fotografia dele. Nem conseguia me lembrar de seu rosto, direito. Mas, quando passei nesta rua e vi o boneco, ali estava ele. É igualzinho! A mesma cara! Então... O desenho... Sei lá!... É pra guardar de lembrança.

João   (06 / 07 / 2012)