domingo, 12 de outubro de 2014

A VOLTA DO CIPÓ DE AROEIRA


Seca!  Calor indescritível!  Um verdadeiro inferno a cada dia. Haja ar condicionado.  Trabalhar se tornou a coisa mais difícil deste mundo. Nas ruas, cada sombra é disputada como troféu. E os poucos ventos vêm como dádiva eventual de algum deus ávido por oblação culpada ou coisa do gênero. As roupas sufocam. A água - escassa - vai se tornando bem supremo. Vida dura, esta nossa.

Que fala é esta? Versão neoliberal de Vidas Secas? Retrato de alguma cidade perdida no sertão?

Longe disto. Aliás, muito, muito longe! Esta é a percepção de um paulistano que vive o clima seco e quente de nossa "terra da garoa". Sim, a cidade que inspirou Adoniran e Vanzolini, hoje está virando sertão. Seca e sol . . . sol e seca . . .  A água, que já foi sereno nas canções dos Demônios da Garoa, vai se transformando em objeto de desejo da população  ou de políticos desatentos que se esquecem de que nenhum reservatório faz o milagre da "multiplicação". Aquele "São Paulo todo frio quando amanhece", do Billy Blanco, deu lugar ao sítio dos recordes de altas temperaturas, dos olhares cada vez mais incrédulos em termômetros com marcas superiores a 24o C logo à seis da manhã. São Paulo está virando sertão.

E, em meio a elucubrações de fim de tarde, enquanto espero o calor baixar um pouco e eu poder enfrentar a estufa das ruas até o metrô, imagino nosso país daqui  a uns vinte ou trinta anos. Tudo diferente. Tudo transformado e invertido, pois ninguém imaginaria que a velha seca, imperiosa mão de ferro na natureza, faria o sólido desfazer-se na brisa da certeza e do desdém.  Os polos invertidos. "A volta do cipó de aroeira". De repente, vejo o Sul virar norte e o Norte tornar-se paraíso prometido. E os paulistas, mineiros, cariocas etc. partem para fazer o norte - ou o nordeste, se preferirmos.

E vejo os retirantes paulistanos chegando ao nordeste depois de inúmeras enchentes terem sido controladas por lá. Os governos dos estados - agora livres dos coronéis - já organizados para produzir, crescer e receber a tão útil e bem vinda mão de obra do sul. Os remanescentes dos antigos redutos de fartura, dos pampas, das gerais e do velho oásis brasileiro que conduzia e não era conduzido, agora chegando aos montes e sendo chamados, todos, indiscriminadamente, de paulistas. Vejo o mineiro de Lavras tentando explicar à elegante senhora a quem vai pedir emprego que ele não é paulista, não tem nada a ver, nem o sotaque é igual. E o forte gaucho, apostando todas as fichas num emprego de servente de pedreiro em nova obra faraônica na Juazeiro do Norte, indignado pelo fato de seu encarregado, um capixaba da gema,  chamá-lo provocativamente de "paulista grandalhão". E fico imaginando, ainda, a perua alagoana perguntando à mocinha carioca, candidata a doméstica, se ela também não gosta de trabalhar como suas amigas do sul.

Nas escolas públicas - já completamente sucateadas como parte de um projeto redentor de privatização, que certamente trará prosperidade a todos -, lá está o menininho de dez anos sofrendo bullying pelo seu sotaque arrastado de paulistano. Num salão de beleza de Teresina, a quieta limpadora paranaense tendo de ouvir de uma madame que, "enquanto nossa cidade estiver infestada por esses paulistas, vamos ter de esperar muito para sermos importantes".

Penso nesta cena: lá em Salvador, dois senhores sentados à mesa num barzinho à beira da Praia de Itapuã, servidos com cuidado por um garçom recém-chegado de Andradina depois de uma viagem de quatro dias, comentando que o nordeste deveria se separar do resto do Brasil. Que a "locomotiva econômica do país" não pode ficar pagando a conta, principalmente desse sul miserável, sem perspectiva e de gente tão pouco disposta para o trabalho. O jovem serviçal, é claro, sem dar importância ao comentário dos dois, esperando apenas por uma bela gorjeta daqueles senhores distintos que o chamam sistematicamente de "chefia".

Já imaginaram nas festas, então! Grupinhos de nordestinos - da elite, ou da classe média aspirante a tal - discutindo sobre como esses paulistas são perigosos, sobre como põem em risco a nossa segurança e tranquilidade. Quase posso ver um deles tomando a palavra e, quase como a proferir a sentença emancipadora da humanidade, declarar: "tem que mandar toda essa gente de volta pra São Paulo".  E, nesse mesmo instante, sua esposa explicando para as amigas por que não suporta mais a babá paulista. "Essa gente é muito burra", declara ela.

Mas, aos poucos, a temperatura vai caindo e decido-me por enfrentar o resto do calor abafado da Sampa. Desço até a portaria do prédio e cumprimento o Ceará, amigo de quase quatro anos, que manobra os carros.

"Calor, hein, seu João! Nem parece São Paulo de quando eu cheguei aqui."

 

       João Luiz Muzinatti