Seca! Calor indescritível! Um verdadeiro inferno a cada dia. Haja ar condicionado. Trabalhar se tornou a coisa mais difícil deste mundo. Nas ruas, cada sombra é disputada como troféu. E os poucos ventos vêm como dádiva eventual de algum deus ávido por oblação culpada ou coisa do gênero. As roupas sufocam. A água - escassa - vai se tornando bem supremo. Vida dura, esta nossa.
Que fala é esta? Versão neoliberal de Vidas Secas? Retrato de alguma cidade
perdida no sertão?
Longe disto. Aliás, muito, muito longe!
Esta é a percepção de um paulistano que vive o clima seco e quente de nossa
"terra da garoa". Sim, a cidade que inspirou Adoniran e Vanzolini,
hoje está virando sertão. Seca e sol . . . sol e seca . . . A água, que já foi sereno nas canções dos
Demônios da Garoa, vai se transformando em objeto de desejo da população ou de políticos desatentos que se esquecem de
que nenhum reservatório faz o milagre da "multiplicação". Aquele "São
Paulo todo frio quando amanhece", do Billy Blanco, deu lugar ao sítio dos
recordes de altas temperaturas, dos olhares cada vez mais incrédulos em termômetros
com marcas superiores a 24o C logo à seis da manhã. São Paulo está
virando sertão.
E, em meio a elucubrações de fim de tarde,
enquanto espero o calor baixar um pouco e eu poder enfrentar a estufa das ruas
até o metrô, imagino nosso país daqui a
uns vinte ou trinta anos. Tudo diferente. Tudo transformado e invertido, pois
ninguém imaginaria que a velha seca, imperiosa mão de ferro na natureza, faria
o sólido desfazer-se na brisa da certeza e do desdém. Os polos invertidos. "A volta do cipó de
aroeira". De repente, vejo o Sul virar norte e o Norte tornar-se paraíso prometido.
E os paulistas, mineiros, cariocas etc. partem para fazer o norte - ou o
nordeste, se preferirmos.
E vejo os retirantes paulistanos chegando
ao nordeste depois de inúmeras enchentes terem sido controladas por lá. Os
governos dos estados - agora livres dos coronéis - já organizados para produzir,
crescer e receber a tão útil e bem vinda mão de obra do sul. Os remanescentes dos
antigos redutos de fartura, dos pampas, das gerais e do velho oásis brasileiro
que conduzia e não era conduzido, agora chegando aos montes e sendo chamados,
todos, indiscriminadamente, de paulistas. Vejo o mineiro de Lavras
tentando explicar à elegante senhora a quem vai pedir emprego que ele não é
paulista, não tem nada a ver, nem o sotaque é igual. E o forte gaucho,
apostando todas as fichas num emprego de servente de pedreiro em nova obra faraônica
na Juazeiro do Norte, indignado pelo fato de seu encarregado, um capixaba da
gema, chamá-lo provocativamente de
"paulista grandalhão". E fico imaginando, ainda, a perua alagoana
perguntando à mocinha carioca, candidata a doméstica, se ela também não gosta
de trabalhar como suas amigas do sul.
Nas escolas públicas - já completamente
sucateadas como parte de um projeto redentor de privatização, que certamente trará
prosperidade a todos -, lá está o menininho de dez anos sofrendo bullying pelo seu sotaque arrastado de
paulistano. Num salão de beleza de Teresina, a quieta limpadora paranaense
tendo de ouvir de uma madame que, "enquanto nossa cidade estiver infestada
por esses paulistas, vamos ter de esperar muito para sermos importantes".
Penso nesta cena: lá em Salvador, dois
senhores sentados à mesa num barzinho à beira da Praia de Itapuã, servidos com
cuidado por um garçom recém-chegado de Andradina depois de uma viagem de quatro
dias, comentando que o nordeste deveria se separar do resto do Brasil. Que a
"locomotiva econômica do país" não pode ficar pagando a conta,
principalmente desse sul miserável, sem perspectiva e de gente tão pouco disposta
para o trabalho. O jovem serviçal, é claro, sem dar importância ao comentário
dos dois, esperando apenas por uma bela gorjeta daqueles senhores
distintos que o chamam sistematicamente de "chefia".
Já imaginaram nas festas, então! Grupinhos
de nordestinos - da elite, ou da classe média aspirante a tal - discutindo
sobre como esses paulistas são perigosos, sobre como põem em risco a nossa
segurança e tranquilidade. Quase posso ver um deles tomando a palavra e, quase
como a proferir a sentença emancipadora da humanidade, declarar: "tem que
mandar toda essa gente de volta pra São Paulo". E, nesse mesmo instante, sua esposa explicando
para as amigas por que não suporta mais a babá paulista. "Essa gente é
muito burra", declara ela.
Mas, aos poucos, a temperatura vai caindo
e decido-me por enfrentar o resto do calor abafado da Sampa. Desço até a
portaria do prédio e cumprimento o Ceará, amigo de quase quatro anos, que
manobra os carros.
"Calor, hein, seu João! Nem parece
São Paulo de quando eu cheguei aqui."
João Luiz Muzinatti
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