terça-feira, 13 de janeiro de 2015

ÊTRE EUX-MÊMES [1]

Enquanto janeiro despeja raivosamente suas águas sobre todos nós, o mundo parece não viver apenas de turbulências naturais. Em meio ao costumeiro clima de férias e de contemplações de paisagens e culturas diferentes, nem tudo são flashes e selfies. Em Paris, a chamada Cidade Luz, os clarões mais cintilantes vieram, desta vez, de armas de fogo. Atentado! Terrorismo! Crime! Assassinato! No último dia 7, terroristas muçulmanos invadiram a redação da revista Charlie Hedbo e fizeram doze mortos. E, no mesmo dia, num supermercado parisiense, outras quatro pessoas também foram covardemente assassinadas. Motivo? Represália contra charges satíricas ao Profeta do Islã, publicadas pelo periódico. Vingança religiosa! Ato perpetrado por um grupo de dementes ultraortodoxos e fanáticos, os quais se dizem representar nada menos que Deus. Assassinato, autoritarismo! E tudo devidamente temperado com sabores sagrados. Na mídia, o show de sempre. Reportagens a todo instante, imagens terríveis, comentários exacerbados, palavras das vítimas, acusações e a velha maneira de se tratar as (consideradas) grandes tragédias: sensacionalismo e polarização entre bem e mal. As pessoas se unindo e protestando contra o terror, com slogans e gestos de quem claramente se posiciona ao lado do justo, do correto e do humano. Muita informação, alguns fatos, muitas interpretações. E este velho professor, aqui, com a interrogação de sempre: o que vou dizer aos meus alunos?
Sim! Lá pelo início de fevereiro, voltaremos, todos nós, às salas de aula. Como sempre, ao entrar, no primeiro dia de curso, verei aquelas dezenas de alunos me mirando com cara de interrogação. "Que diabos vai nos falar?" "O que há de novo que supere o show diário das mídias e das redes sociais?" "Será que é mais um desses sujeito que vai vir com aqueles papos que não têm nada que ver com o mundo?" E eu? Vou dizer o quê? Certamente, o assunto será o atentado e seus desdobramentos. Com certeza, já estarão com um vasto repertório. O que sobrará para mim? Pior ainda, o que poderei dizer-lhes que não seja corroborar as teses lançadas em quase um mês de massacre jornalístico? Fico pensando - entre indeciso e incomodado - sobre a situação em si, os meus interlocutores e o que um ambiente pretensamente consagrado ao saber poderá lhes oferecer. Talvez, tenha de ser o mais aberto, descomprometido e sincero possível. Sim! Quem sabe o melhor de mim, nesse momento, não possa ser eu próprio? Como eu poderei me sentir nesse momento, e como posso me dar a eles - de verdade? E, como professor de Filosofia, adoro procurar coisas que não costumam ficar escancaradas em fatos e notícias.
Bem, a verdade é que sempre fui uma pessoa muito crítica em relação à religião de uma forma geral. Tendo colecionado muitos desafetos ao longo de minha juventude - em razão do conteúdo sempre questionador acerca das religiões -, acabei desenvolvendo uma forma irônica de tratar preconceitos, sectarismos, autoritarismos, segregações e dogmatismos que vejo presentes em todas elas. Porém, nem isso deu muito certo. Via de regra, me dizem que não tenho o direito de ser irônico com questões que envolvem a fé das pessoas. E, antes que a cabeça dos alunos pegue fogo, tenho de arranjar uma saída para isto, pois gente que me acusava de ser (injustamente) irônico com as religiões, agora vem dizendo defender o direito à ironia - ingrediente sempre presente em tiradas humorísticas. Agora, mudou? O que o Charlie tem que eu não tenho - em termos de direitos, é claro?
Outra coisa: que história é essa de dizer "eu sou Charlie"? Será que é justo chegar aos alunos e dizer que eles são alguma coisa? Ou que devem aderir a alguma ideia ou crença? Que instância tem o direito de decidir o que uma pessoa é? Ao me dar a eles, não poderei jamais dizer que sou, nem que eles são, pois a vida é um grande espetáculo de devir e as coisas se transformam o tempo todo. Será que eles seriam Charlie? Eu, como já disse, sou aconselhado, dia a dia, a nem tentar ser um João mais abusado que o normal . . .  E o que dizer àqueles que já vierem vestidos com camisetas Je suis Charlie?
Com certeza, virão com dizeres meio decorados, como "somos todos ocidentais". Será que sabem o que pode querer dizer "ser ocidental"? Talvez, neste momento, como professor, possa lhes dar alguma informação (e indicações de pesquisa) sobre essa construção humana de dois mil anos, que chega a um ponto - no nosso tempo - em que democracia, cristianismo, capitalismo, liberdade de expressão, consumo e individualidade são alguns de seus valores mais recorrentes. E, por falar nisso, já ouvi de gente que se diz liberal, que "esses muçulmanos têm de aceitar que somos ocidentais". Engraçado ver como, em certas situações, ser liberal não é aceitar a visão do outro, mas - sim - exigir que aceitem a nossa. Talvez, este seja um belo tema de discussão. "Valores ocidentais". O, até mesmo, "alguém sabe o que é ser ocidental?"
Por falar em ocidental, um dos termos mais proferidos nos últimos dias é fundamentalismo. Muita gente está dizendo esta palavra a torto e a direito, mas me questiono se  a profundidade deste conceito esteja na perspectiva da maioria que fala e repete sem parar. Bom tema para tratar com os meninos. Será que fundamentalismo é coisa só de muçulmano? Bush, ao invadir o Iraque dizendo que Deus estava do seu lado, não teria sido movido por um fundamentalismo cristão? E, aí, vêm outros temas que podem ter a ver com os estudos de nossos queridos alunos: Cruzadas, Inquisição . . . Outra coisa: o atual mundo "Ocidental" também não pode ter lá seus fundamentalismos? O querido mestre Milton Santos dizia que o consumismo é o fundamentalismo de nosso tempo. Bobagem? Será? Já vi muitos casos envolvendo angústias, tragédias ou desencantos nos quais, ao invés de rezar, as pessoas simplesmente vão às compras
Mas, antes que possa ser acusado de heresia pelos fiéis seguidores do "Ocidentalismo", gostaria de ratificar que sou absolutamente contrário a qualquer tipo de terrorismo - inclusive  o que vitimou a  Charlie Hedbo. Temos de combatê-lo, sim, e a todos os outros. Com 55 anos de idade, já vi e aprendi muito sobre isso.  Já tivemos até bombas atômicas sendo jogadas sobre cidades enquanto as pessoas dormiam . . .  Apenas quero poder ensinar mais do que a mídia já ensina - afinal, sou pago para isso. E, por falar em terror, tremo de medo de que aconteça, na Europa, o que já vimos em passados remotos - ou não tão remotos assim. Afinal, sinto no ar uma onda - meio cega, eu diria - de islamofobia. Tem partido de extrema direita esfregando as mãos, por aí. Bobagem minha? Bem, não custa falar. Ou será que custa?
Neste momento, coleciono matérias de jornais, revistas e vídeos para poder apresentar aos alunos. Muitos deles, certamente, os estudantes já conhecerão. Porém, talvez eu possa apresentar-lhes um outro olhar - mais um - sobre essa parafernália toda. Para que possam criar um posicionamento livre: só deles. Afinal, quem sabe não consigam ser eles próprios?

[1]  Fr.   Ser eles próprios

João Luiz Muzinatti   -   janeiro de 2015