Enquanto janeiro despeja raivosamente
suas águas sobre todos nós, o mundo parece não viver apenas de turbulências
naturais. Em meio ao costumeiro clima de férias e de contemplações de paisagens
e culturas diferentes, nem tudo são flashes e selfies. Em Paris, a chamada Cidade
Luz, os clarões mais cintilantes vieram, desta vez, de armas de fogo. Atentado!
Terrorismo! Crime! Assassinato! No último dia 7, terroristas muçulmanos invadiram
a redação da revista Charlie Hedbo
e fizeram doze mortos. E, no mesmo dia, num supermercado parisiense, outras
quatro pessoas também foram covardemente assassinadas. Motivo? Represália
contra charges satíricas ao Profeta do
Islã, publicadas pelo periódico. Vingança religiosa! Ato perpetrado por um
grupo de dementes ultraortodoxos e fanáticos, os quais se dizem representar
nada menos que Deus. Assassinato,
autoritarismo! E tudo devidamente temperado com sabores sagrados. Na mídia, o
show de sempre. Reportagens a todo instante, imagens terríveis, comentários
exacerbados, palavras das vítimas, acusações e a velha maneira de se tratar as
(consideradas) grandes tragédias: sensacionalismo e polarização entre bem e
mal. As pessoas se unindo e protestando contra o terror, com slogans e gestos
de quem claramente se posiciona ao lado do justo, do correto e do humano. Muita
informação, alguns fatos, muitas interpretações. E este velho professor, aqui,
com a interrogação de sempre: o que vou
dizer aos meus alunos?
Sim! Lá pelo início de fevereiro,
voltaremos, todos nós, às salas de aula. Como sempre, ao entrar, no primeiro
dia de curso, verei aquelas dezenas de alunos me mirando com cara de
interrogação. "Que diabos vai nos falar?" "O que há de novo que
supere o show diário das mídias e das redes sociais?" "Será que é
mais um desses sujeito que vai vir com aqueles papos que não têm nada que ver
com o mundo?" E eu? Vou dizer o quê? Certamente, o assunto será o atentado
e seus desdobramentos. Com certeza, já estarão com um vasto repertório. O que
sobrará para mim? Pior ainda, o que poderei dizer-lhes que não seja corroborar
as teses lançadas em quase um mês de massacre jornalístico? Fico pensando -
entre indeciso e incomodado - sobre a situação em si, os meus interlocutores e
o que um ambiente pretensamente consagrado ao saber poderá lhes oferecer. Talvez,
tenha de ser o mais aberto, descomprometido e sincero possível. Sim! Quem sabe
o melhor de mim, nesse momento, não possa ser eu próprio? Como eu poderei me sentir nesse momento, e como posso
me dar a eles - de verdade? E, como professor de Filosofia, adoro procurar
coisas que não costumam ficar escancaradas em fatos e notícias.
Bem, a verdade é que sempre fui uma
pessoa muito crítica em relação à religião de uma forma geral. Tendo
colecionado muitos desafetos ao longo de minha juventude - em razão do conteúdo
sempre questionador acerca das religiões -, acabei desenvolvendo uma forma
irônica de tratar preconceitos, sectarismos, autoritarismos, segregações e
dogmatismos que vejo presentes em todas elas. Porém, nem isso deu muito certo.
Via de regra, me dizem que não tenho o
direito de ser irônico com questões que envolvem a fé das pessoas. E, antes
que a cabeça dos alunos pegue fogo, tenho de arranjar uma saída para isto, pois
gente que me acusava de ser (injustamente) irônico com as religiões, agora vem
dizendo defender o direito à ironia
- ingrediente sempre presente em tiradas humorísticas. Agora, mudou? O que o Charlie
tem que eu não tenho - em termos de direitos, é claro?
Outra coisa: que história é essa de
dizer "eu sou Charlie"? Será
que é justo chegar aos alunos e dizer que eles são alguma coisa? Ou que devem aderir a alguma ideia ou crença? Que
instância tem o direito de decidir o que uma pessoa é? Ao me dar a eles, não
poderei jamais dizer que sou, nem
que eles são, pois a vida é um
grande espetáculo de devir e as coisas se transformam o tempo todo. Será que
eles seriam Charlie? Eu, como já disse, sou aconselhado, dia a dia, a nem
tentar ser um João mais abusado que o normal . . . E o que dizer àqueles que já vierem vestidos
com camisetas Je suis Charlie?
Com certeza, virão com dizeres meio
decorados, como "somos todos ocidentais". Será que sabem o que pode
querer dizer "ser ocidental"? Talvez, neste momento, como professor,
possa lhes dar alguma informação (e indicações de pesquisa) sobre essa
construção humana de dois mil anos, que chega a um ponto - no nosso tempo - em
que democracia, cristianismo, capitalismo, liberdade de expressão, consumo e
individualidade são alguns de seus valores mais recorrentes. E, por falar
nisso, já ouvi de gente que se diz liberal, que "esses muçulmanos têm de
aceitar que somos ocidentais". Engraçado ver como, em certas situações,
ser liberal não é aceitar a visão do outro, mas - sim - exigir que aceitem a
nossa. Talvez, este seja um belo tema de discussão. "Valores
ocidentais". O, até mesmo, "alguém sabe o que é ser ocidental?"
Por falar em ocidental, um dos termos
mais proferidos nos últimos dias é fundamentalismo.
Muita gente está dizendo esta palavra a torto e a direito, mas me questiono
se a profundidade deste conceito esteja
na perspectiva da maioria que fala e repete sem parar. Bom tema para tratar com
os meninos. Será que fundamentalismo é coisa só de muçulmano? Bush, ao invadir
o Iraque dizendo que Deus estava do seu lado, não teria sido movido por um fundamentalismo cristão? E, aí, vêm
outros temas que podem ter a ver com os estudos de nossos queridos alunos:
Cruzadas, Inquisição . . . Outra coisa: o atual mundo "Ocidental"
também não pode ter lá seus fundamentalismos? O querido mestre Milton Santos
dizia que o consumismo é o
fundamentalismo de nosso tempo. Bobagem? Será? Já vi muitos casos envolvendo
angústias, tragédias ou desencantos nos quais, ao invés de rezar, as pessoas
simplesmente vão às compras.
Mas, antes que possa ser acusado de
heresia pelos fiéis seguidores do "Ocidentalismo", gostaria de
ratificar que sou absolutamente contrário a qualquer tipo de terrorismo -
inclusive o que vitimou a Charlie Hedbo. Temos de combatê-lo, sim,
e a todos os outros. Com 55 anos de idade, já vi e aprendi muito sobre
isso. Já tivemos até bombas atômicas
sendo jogadas sobre cidades enquanto as pessoas dormiam . . . Apenas quero poder ensinar mais do que a
mídia já ensina - afinal, sou pago para isso. E, por falar em terror, tremo de
medo de que aconteça, na Europa, o que já vimos em passados remotos - ou não
tão remotos assim. Afinal, sinto no ar uma onda - meio cega, eu diria - de islamofobia. Tem partido de extrema
direita esfregando as mãos, por aí. Bobagem minha? Bem, não custa falar. Ou
será que custa?
Neste momento,
coleciono matérias de jornais, revistas e vídeos para poder apresentar aos
alunos. Muitos deles, certamente, os estudantes já conhecerão. Porém, talvez eu
possa apresentar-lhes um outro olhar - mais um - sobre essa parafernália toda.
Para que possam criar um posicionamento livre: só deles. Afinal, quem sabe não consigam
ser eles próprios?
[1] Fr. Ser eles próprios
[1] Fr. Ser eles próprios
João Luiz Muzinatti - janeiro de 2015
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