sábado, 5 de julho de 2014

Ó Pátria amada


Quanto choro! De repente, todo mundo em prantos nos jogos da copa do mundo. Por causa das derrotas? Um pouco. Emoção com as vitórias arrancadas na última hora? Algumas vezes. Mas, o que chama mais a atenção é a febre de se cantar os hinos à capela, ou mesmo os atletas com caras de guerreiros em busca de símbolos sagrados ou do resgate de antigas terras dominadas. Jogadores virando heróis e torcedores emocionados. Tudo muito lindo! O povo a saudar os cruzados que saem para a guerra. "Arrepia",como disse um amigo outro dia. Porém, em tudo o que há exagero, alguma coisa estranha - no mínimo - está sempre presente. E lá vou eu, novamente, procurar pelo em ovo.

Acontece que, por mais que adoremos futebol - e eu estou entre os que não choram em enterro, mas despejam lágrimas com gols de placa -, não creio que jogos da copa sejam situações para ressaltar patriotismos e sentimentos nacionalistas. Inclusive, estou escrevendo este texto justamente para questionar - mais que outras coisas - a própria noção de patriotismo enrustida nesse gesto de gritar heroicamente um hino nacional. Para mim, existe aí algo anacrônico e nefasto. Então, vamos lá!

Pátria é de origem latina - de patriae - e tem uma forte relação com pater, de pai. Significa um lugar onde se nasce, ou melhor, onde muitos como nós nascem. Dá sempre uma ideia de pertencimento a uma nação, a um povo, a uma cultura. Que lindo! Que bom, nos ensinam, é fazer parte de um coletivo maior do que nós. Um país, uma etnia ou uma religião. A maioria de nós, quando se dá conta de que existe, já possui marcas - físicas ou não - de um pertencimento a algo maior. E sempre ouvimos que isso é muito bom, que nos estrutura eticamente. Afinal, nos localiza e identifica no mundo. Mas, é aí que mora o meu incômodo.

Normalmente, passamos a ter uma pátria num momento em que não estamos conscientes disso. Então, essa característica "importantíssima" para nossa vida nos é impingida, nos cai de cima, independente de nossa vontade - geralmente quando somos ainda bebês. Que estranho, não? Algo extremamente importante em nossas vidas é decidido por outras pessoas. Falta alguma peça neste quebra-cabeça. Raça, religião e a tal da tradição. Tudo isso recebemos quando não podemos optar. E, depois, quando percebemos, as marcas já estão em nós. Aí, fica difícil optar. Quando tentamos, via de regra somos constrangidos, viramos traidores, ou, em alguns segmentos da vida, podemos até sofrer excomunhões - o que, para alguns, vem até como supremo alívio. E, num mundo que já teve Rousseau, Kant, Nietzsche e Sartre, ainda temos de perguntar a outros quem somos, ou quem devemos continuar a ser.

E, assim, ao cantar o hino nacional com cara de bravos, a plenos pulmões, o que estamos querendo dizer? Alguém sabe? "Que importa isso?", diria certamente o Galvão Bueno. O importante é ter festa na Paulista, depois do jogo. Mas, ouso pensar que as pessoas não conseguem nos explicar por que acham bonito e por que isso é "bom". Aceitaria tranquilamente os insultos e não ligaria se me chamassem de chato e mal-humorado se não entendesse que algo muito importante, e perigoso, está em jogo nessa brincadeira de "tremer pela pátria". Falando mais claramente, temo pela violência que possa estar sendo ensinada.

Não estou me referindo à violência no esporte, ou por causa do esporte. Brigar por futebol é uma doidice, mas creio que haja coisa pior. A meu ver, incutir a noção de pátria (ou nação) nas crianças, hoje, é um gesto, no mínimo, contraditório, para não dizer perverso. Sim, pois vivemos num mundo em que as noções de fronteira, distância ou cultura nacional já perderam, em muito, seu sentido. Nossos jovens, antes mesmo de saber cantar seu hino nacional, já conversam, jogam e interagem com pessoas do mundo todo. Palavras que designam situações ou coisas importantes para eles são aprendidas inicialmente, muitas vezes, num outro idioma que não o de seu país, ou o de seus pais. Antes mesmo de torcerem para os times de seu pai, muitas crianças já viram fanáticas por clubes europeus. Então, chamá-los para mostrar que possuem uma pátria acaba caindo como uma bomba sobre suas cabeças. De repente, sua culpa aponta para o fato de serem membros de um todo muito maior do que tudo o que já puderam perceber. Uma religião onde descobrem que foram, um dia, batizados; um sinal físico, traçado logo que nasceram, que os obriga "natural" e inexoravelmente a pertencer a um povo; um idioma (ou um dialeto que lhes foi ensinado) que os obrigará a odiar este ou aquele povo. Enquanto os sinais do mundo mostram que somos um espaço único em que podemos transitar sossegada e livremente, o dedo inquisidor vem nos lembrar que somos desta ou daquela pátria.

Em nosso país, não sentimos tanto essas diferenças e podemos até dizer que seja mínima a violência por causa da noção de pátria. Mas, pensemos em dois meninos fanáticos por futebol, um judeu e outro palestino, assistindo ao mesmo tempo aos times cantando seus hinos. As caretas dos jogadores, e os gritos quase desesperados, vão ensinar muito mais do que a necessidade de uma festa depois do jogo para ser filmada pela Globo. Estarão aprendendo que devem ser guerreiros de suas nações, de suas tradições. Que seu hino é um símbolo a ser sacralizado e honrado - e quase nunca se perguntam o porquê disto. E, na terra do samba, apesar da aparente calmaria, também se aprende a ter um amor cego pela pátria. Nada preocupante, por ora. Mas, saber é sempre saber. Fica guardado para o momento certo de ser usado.

A noção de pátria pode encerrar violência latente. Sim, pois dela advém o sentimento imbecil de "identidade nacional" - por favor, gostaria de saber para quê seria útil esta noção, além de gerar exclusão, segregação e certas unanimidades inexplicáveis - e dogmáticas. Pátria é o que justifica a formação de estados estruturados, não em direitos, mas em aspectos culturais ou religiosos.

Hinos gritados com gana e caras de raiva são como aulas de ódio em doses homeopáticas. Ódio ao diferente. Ódio que, enquanto meu time vence, fica camuflado e transforma-se em festa, mas que, quando vem acompanhado de derrota, acaba justificando batalhas campais imbecis - talvez o leitor nuca tenha tido notícias disto, mas que existe, existe. Ódio que nos há de acompanhar adormecido até o momento em que a diferença tiver de ser digerida. Ódio que nos faz não gostar de alguém apenas pelo seu sotaque, traço físico ou idioma. Ódio que leva crianças a tratarem mal os estrangeiros que vêm estudar em sua escola. Ódio que justifica o desprezo e a perseguição.

Pode ser que o caro leitor tenha ficado decepcionado comigo. Posso estar sendo chamado, agora de estraga-prazeres ou coisa assim. Que direito eu tenho de invalidar as doces lágrimas emocionadas do momento dos hinos? Peço perdão àqueles que estou ofendendo ou magoando. É que sou uma pessoa preocupada com aquilo que não se vê claramente, aquilo que pode estar escondido. Afinal, as armadilhas eficazes são as que não se revelam até que o momento em que nos capturam. Para aqueles que discordam radicalmente de minhas palavras, bom jogo! Bom hino!  Para quem se interessou minimamente pelo tema, no momento dos hino, experimente baixar o volume do som da TV. E faça um exercício literário de criar uma narrativa para essas imagens. Depois, caso saia bom, publique seu texto. A copa já terá acabado e, talvez, só encontre patrocinadores interessados em editar textos de epopeias ou guerras santas.

Um comentário:

  1. Muito bom o texto, João. Parabéns pela delicadeza com que tratou o tema!

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