Quanto choro!
De repente, todo mundo em prantos nos jogos da copa do mundo. Por causa das
derrotas? Um pouco. Emoção com as vitórias arrancadas na última hora? Algumas
vezes. Mas, o que chama mais a atenção é a febre de se cantar os hinos à
capela, ou mesmo os atletas com caras de guerreiros em busca de símbolos
sagrados ou do resgate de antigas terras dominadas. Jogadores virando heróis e
torcedores emocionados. Tudo muito lindo! O povo a saudar os cruzados que saem
para a guerra. "Arrepia",como disse um amigo outro dia. Porém, em
tudo o que há exagero, alguma coisa estranha - no mínimo - está sempre
presente. E lá vou eu, novamente, procurar pelo em ovo.
Acontece que,
por mais que adoremos futebol - e eu estou entre os que não choram em enterro,
mas despejam lágrimas com gols de placa -, não creio que jogos da copa sejam
situações para ressaltar patriotismos e sentimentos nacionalistas. Inclusive,
estou escrevendo este texto justamente para questionar - mais que outras coisas
- a própria noção de patriotismo enrustida nesse gesto de gritar heroicamente
um hino nacional. Para mim, existe aí algo anacrônico e nefasto. Então, vamos
lá!
Pátria é de origem latina - de patriae
- e tem uma forte relação com pater, de pai. Significa um lugar
onde se nasce, ou melhor, onde muitos como nós nascem. Dá sempre uma ideia de pertencimento
a uma nação, a um povo, a uma cultura. Que lindo! Que bom, nos ensinam, é fazer
parte de um coletivo maior do que nós. Um país, uma etnia ou uma religião. A
maioria de nós, quando se dá conta de que existe, já possui marcas - físicas ou
não - de um pertencimento a algo maior. E sempre ouvimos que isso é muito bom,
que nos estrutura eticamente. Afinal, nos localiza e identifica no mundo. Mas,
é aí que mora o meu incômodo.
Normalmente, passamos
a ter uma pátria num momento em que não estamos conscientes disso. Então, essa característica
"importantíssima" para nossa vida nos é impingida, nos cai de cima, independente
de nossa vontade - geralmente quando somos ainda bebês. Que estranho, não? Algo
extremamente importante em nossas vidas é decidido por outras pessoas. Falta
alguma peça neste quebra-cabeça. Raça, religião e a tal da tradição. Tudo isso
recebemos quando não podemos optar. E, depois, quando percebemos, as marcas já
estão em nós. Aí, fica difícil optar. Quando tentamos, via de regra somos
constrangidos, viramos traidores, ou, em alguns segmentos da vida, podemos
até sofrer excomunhões - o que, para alguns, vem até como supremo alívio. E,
num mundo que já teve Rousseau, Kant, Nietzsche e Sartre, ainda temos de
perguntar a outros quem somos, ou quem devemos continuar a ser.
E, assim, ao
cantar o hino nacional com cara de bravos, a plenos pulmões, o que estamos
querendo dizer? Alguém sabe? "Que importa isso?", diria certamente o
Galvão Bueno. O importante é ter festa na Paulista, depois do jogo. Mas, ouso
pensar que as pessoas não conseguem nos explicar por que acham bonito e por que
isso é "bom". Aceitaria tranquilamente os insultos e não ligaria se
me chamassem de chato e mal-humorado se não entendesse que algo muito
importante, e perigoso, está em jogo nessa brincadeira de "tremer pela
pátria". Falando mais claramente, temo pela violência que possa estar
sendo ensinada.
Não estou me
referindo à violência no esporte, ou por causa do esporte. Brigar por futebol é
uma doidice, mas creio que haja coisa pior. A meu ver, incutir a noção de
pátria (ou nação) nas crianças, hoje, é um gesto, no mínimo, contraditório,
para não dizer perverso. Sim, pois vivemos num mundo em que as noções de
fronteira, distância ou cultura nacional já perderam, em muito, seu sentido.
Nossos jovens, antes mesmo de saber cantar seu hino nacional, já conversam,
jogam e interagem com pessoas do mundo todo. Palavras que designam situações ou
coisas importantes para eles são aprendidas inicialmente, muitas vezes, num
outro idioma que não o de seu país, ou o de seus pais. Antes mesmo de torcerem
para os times de seu pai, muitas crianças já viram fanáticas por clubes
europeus. Então, chamá-los para mostrar que possuem uma pátria acaba caindo
como uma bomba sobre suas cabeças. De repente, sua culpa aponta para o fato de
serem membros de um todo muito maior do que tudo o que já puderam perceber. Uma
religião onde descobrem que foram, um dia, batizados; um sinal físico, traçado
logo que nasceram, que os obriga "natural" e inexoravelmente a
pertencer a um povo; um idioma (ou um dialeto que lhes foi ensinado) que os
obrigará a odiar este ou aquele povo. Enquanto os sinais do mundo mostram que
somos um espaço único em que podemos transitar sossegada e livremente, o dedo
inquisidor vem nos lembrar que somos desta ou daquela pátria.
Em nosso
país, não sentimos tanto essas diferenças e podemos até dizer que seja mínima a
violência por causa da noção de pátria. Mas, pensemos em dois meninos fanáticos
por futebol, um judeu e outro palestino, assistindo ao mesmo tempo aos times
cantando seus hinos. As caretas dos jogadores, e os gritos quase desesperados,
vão ensinar muito mais do que a necessidade de uma festa depois do jogo para
ser filmada pela Globo. Estarão aprendendo que devem ser guerreiros de suas
nações, de suas tradições. Que seu hino é um símbolo a ser sacralizado e
honrado - e quase nunca se perguntam o porquê disto. E, na terra do samba,
apesar da aparente calmaria, também se aprende a ter um amor cego pela pátria. Nada
preocupante, por ora. Mas, saber é sempre saber. Fica guardado para o momento
certo de ser usado.
A noção de
pátria pode encerrar violência latente. Sim, pois dela advém o sentimento imbecil
de "identidade nacional" - por favor, gostaria de saber para quê
seria útil esta noção, além de gerar exclusão, segregação e certas unanimidades
inexplicáveis - e dogmáticas. Pátria é o que justifica a formação de estados
estruturados, não em direitos, mas em aspectos culturais ou religiosos.
Hinos
gritados com gana e caras de raiva são como aulas de ódio em doses
homeopáticas. Ódio ao diferente. Ódio que, enquanto meu time vence, fica
camuflado e transforma-se em festa, mas que, quando vem acompanhado de derrota,
acaba justificando batalhas campais imbecis - talvez o leitor nuca tenha tido
notícias disto, mas que existe, existe. Ódio que nos há de acompanhar adormecido
até o momento em que a diferença tiver de ser digerida. Ódio que nos faz não
gostar de alguém apenas pelo seu sotaque, traço físico ou idioma. Ódio que leva
crianças a tratarem mal os estrangeiros que vêm estudar em sua escola. Ódio que
justifica o desprezo e a perseguição.
Pode ser que
o caro leitor tenha ficado decepcionado comigo. Posso estar sendo chamado,
agora de estraga-prazeres ou coisa assim. Que direito eu tenho de invalidar as doces
lágrimas emocionadas do momento dos hinos? Peço perdão àqueles que estou
ofendendo ou magoando. É que sou uma pessoa preocupada com aquilo que não se vê
claramente, aquilo que pode estar escondido. Afinal, as armadilhas eficazes são
as que não se revelam até que o momento em que nos capturam. Para aqueles que
discordam radicalmente de minhas palavras, bom jogo! Bom hino! Para quem se interessou minimamente pelo tema,
no momento dos hino, experimente baixar o volume do som da TV. E faça um
exercício literário de criar uma narrativa para essas imagens. Depois, caso
saia bom, publique seu texto. A copa já terá acabado e, talvez, só encontre
patrocinadores interessados em editar textos de epopeias ou guerras santas.
Muito bom o texto, João. Parabéns pela delicadeza com que tratou o tema!
ResponderExcluir