quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

SENHORES DA VIDA


Os senhores da vida

e da morte

desideratos, telas raras

sonhos mortais

de quem sulca o mundo

escala a sorte

ou apenas rola

e espera

 

estranhas feições

de monstros raros

ou banais (isto pouco importa)

ondas gigantescas

a açoitar terra firme

e tragar os tantos milagres

da gente simples

ao pé da sorte

 

prostrados, não entendem

seu dia de órfão

peregrino

asa abatida pelo calmo

acanhado

e parco sopro da vida

da terra, do dia banal

da doce e fina

graça do não ser nada
 
 

domingo, 12 de outubro de 2014

A VOLTA DO CIPÓ DE AROEIRA


Seca!  Calor indescritível!  Um verdadeiro inferno a cada dia. Haja ar condicionado.  Trabalhar se tornou a coisa mais difícil deste mundo. Nas ruas, cada sombra é disputada como troféu. E os poucos ventos vêm como dádiva eventual de algum deus ávido por oblação culpada ou coisa do gênero. As roupas sufocam. A água - escassa - vai se tornando bem supremo. Vida dura, esta nossa.

Que fala é esta? Versão neoliberal de Vidas Secas? Retrato de alguma cidade perdida no sertão?

Longe disto. Aliás, muito, muito longe! Esta é a percepção de um paulistano que vive o clima seco e quente de nossa "terra da garoa". Sim, a cidade que inspirou Adoniran e Vanzolini, hoje está virando sertão. Seca e sol . . . sol e seca . . .  A água, que já foi sereno nas canções dos Demônios da Garoa, vai se transformando em objeto de desejo da população  ou de políticos desatentos que se esquecem de que nenhum reservatório faz o milagre da "multiplicação". Aquele "São Paulo todo frio quando amanhece", do Billy Blanco, deu lugar ao sítio dos recordes de altas temperaturas, dos olhares cada vez mais incrédulos em termômetros com marcas superiores a 24o C logo à seis da manhã. São Paulo está virando sertão.

E, em meio a elucubrações de fim de tarde, enquanto espero o calor baixar um pouco e eu poder enfrentar a estufa das ruas até o metrô, imagino nosso país daqui  a uns vinte ou trinta anos. Tudo diferente. Tudo transformado e invertido, pois ninguém imaginaria que a velha seca, imperiosa mão de ferro na natureza, faria o sólido desfazer-se na brisa da certeza e do desdém.  Os polos invertidos. "A volta do cipó de aroeira". De repente, vejo o Sul virar norte e o Norte tornar-se paraíso prometido. E os paulistas, mineiros, cariocas etc. partem para fazer o norte - ou o nordeste, se preferirmos.

E vejo os retirantes paulistanos chegando ao nordeste depois de inúmeras enchentes terem sido controladas por lá. Os governos dos estados - agora livres dos coronéis - já organizados para produzir, crescer e receber a tão útil e bem vinda mão de obra do sul. Os remanescentes dos antigos redutos de fartura, dos pampas, das gerais e do velho oásis brasileiro que conduzia e não era conduzido, agora chegando aos montes e sendo chamados, todos, indiscriminadamente, de paulistas. Vejo o mineiro de Lavras tentando explicar à elegante senhora a quem vai pedir emprego que ele não é paulista, não tem nada a ver, nem o sotaque é igual. E o forte gaucho, apostando todas as fichas num emprego de servente de pedreiro em nova obra faraônica na Juazeiro do Norte, indignado pelo fato de seu encarregado, um capixaba da gema,  chamá-lo provocativamente de "paulista grandalhão". E fico imaginando, ainda, a perua alagoana perguntando à mocinha carioca, candidata a doméstica, se ela também não gosta de trabalhar como suas amigas do sul.

Nas escolas públicas - já completamente sucateadas como parte de um projeto redentor de privatização, que certamente trará prosperidade a todos -, lá está o menininho de dez anos sofrendo bullying pelo seu sotaque arrastado de paulistano. Num salão de beleza de Teresina, a quieta limpadora paranaense tendo de ouvir de uma madame que, "enquanto nossa cidade estiver infestada por esses paulistas, vamos ter de esperar muito para sermos importantes".

Penso nesta cena: lá em Salvador, dois senhores sentados à mesa num barzinho à beira da Praia de Itapuã, servidos com cuidado por um garçom recém-chegado de Andradina depois de uma viagem de quatro dias, comentando que o nordeste deveria se separar do resto do Brasil. Que a "locomotiva econômica do país" não pode ficar pagando a conta, principalmente desse sul miserável, sem perspectiva e de gente tão pouco disposta para o trabalho. O jovem serviçal, é claro, sem dar importância ao comentário dos dois, esperando apenas por uma bela gorjeta daqueles senhores distintos que o chamam sistematicamente de "chefia".

Já imaginaram nas festas, então! Grupinhos de nordestinos - da elite, ou da classe média aspirante a tal - discutindo sobre como esses paulistas são perigosos, sobre como põem em risco a nossa segurança e tranquilidade. Quase posso ver um deles tomando a palavra e, quase como a proferir a sentença emancipadora da humanidade, declarar: "tem que mandar toda essa gente de volta pra São Paulo".  E, nesse mesmo instante, sua esposa explicando para as amigas por que não suporta mais a babá paulista. "Essa gente é muito burra", declara ela.

Mas, aos poucos, a temperatura vai caindo e decido-me por enfrentar o resto do calor abafado da Sampa. Desço até a portaria do prédio e cumprimento o Ceará, amigo de quase quatro anos, que manobra os carros.

"Calor, hein, seu João! Nem parece São Paulo de quando eu cheguei aqui."

 

       João Luiz Muzinatti

 

domingo, 27 de julho de 2014

O bom civilizado


Amemos o bom civilizado!

Ele é doce

feito mel,

e escorre pelas ruas,

e pelos tempos.

Decora sua casa

e seu corpo

com a cor do mundo,

doce mundo,

em que vive.

 

Cumpre regras

porque é bom,

experimenta os doces,

as farfalhas . . .

os prazeres limpos

e as fugas lícitas.

 

Advoga, constrói,

discursa,

ensina e cura,

e ensina a cura

para dores intrusas

ou corriqueiras,

fumos de paixões e sonhos

extraviados . . .

ou pura dor . . .

de se dar

ou se querer.

 

Amemos o bom civilizado!

Pois ele próprio ama.

Ama a vida doce

que lhe ensinaram,

vida estranha

(mas pura)

do suor da boa dor,

a vida da outra vida,

do outro mundo,

do bom mundo.

 

Ama a mulher que lhe coube

na heroica epopeia

de escalar a história

e deixar sementes.

A mulher única, só sua,

amante por vocação

e sua por devoção.

Ama sem pensar

e vive para amar.

Amar, amar . . .

Até não poder mais . . .

de tanto amar . . .

e amar ainda mais.

 

Amemos o bom civilizado,

altivo errante

a alucinar

um mundo trêmulo

torto, cadente.

A vagar em delírios,

tristezas soltas e descabidas,

sonhar prazeres perversos

e calmarias covardes,

flores (apenas)

proibidas. . .

céus de areia . . .

 

Mas, valente,

se aninha ao solo eterno,

seguro,

firme,

vasto jardim de orquídeas

esculpido qual vale pitoresco

pela fé nas coisas

invisíveis,

inexplicáveis,

eternas . . .

Uma vida a mais,

outra mais,

a diluir a tosca rocha

e o olhar ingênuo

do dia que desponta.

 

sábado, 5 de julho de 2014

Ó Pátria amada


Quanto choro! De repente, todo mundo em prantos nos jogos da copa do mundo. Por causa das derrotas? Um pouco. Emoção com as vitórias arrancadas na última hora? Algumas vezes. Mas, o que chama mais a atenção é a febre de se cantar os hinos à capela, ou mesmo os atletas com caras de guerreiros em busca de símbolos sagrados ou do resgate de antigas terras dominadas. Jogadores virando heróis e torcedores emocionados. Tudo muito lindo! O povo a saudar os cruzados que saem para a guerra. "Arrepia",como disse um amigo outro dia. Porém, em tudo o que há exagero, alguma coisa estranha - no mínimo - está sempre presente. E lá vou eu, novamente, procurar pelo em ovo.

Acontece que, por mais que adoremos futebol - e eu estou entre os que não choram em enterro, mas despejam lágrimas com gols de placa -, não creio que jogos da copa sejam situações para ressaltar patriotismos e sentimentos nacionalistas. Inclusive, estou escrevendo este texto justamente para questionar - mais que outras coisas - a própria noção de patriotismo enrustida nesse gesto de gritar heroicamente um hino nacional. Para mim, existe aí algo anacrônico e nefasto. Então, vamos lá!

Pátria é de origem latina - de patriae - e tem uma forte relação com pater, de pai. Significa um lugar onde se nasce, ou melhor, onde muitos como nós nascem. Dá sempre uma ideia de pertencimento a uma nação, a um povo, a uma cultura. Que lindo! Que bom, nos ensinam, é fazer parte de um coletivo maior do que nós. Um país, uma etnia ou uma religião. A maioria de nós, quando se dá conta de que existe, já possui marcas - físicas ou não - de um pertencimento a algo maior. E sempre ouvimos que isso é muito bom, que nos estrutura eticamente. Afinal, nos localiza e identifica no mundo. Mas, é aí que mora o meu incômodo.

Normalmente, passamos a ter uma pátria num momento em que não estamos conscientes disso. Então, essa característica "importantíssima" para nossa vida nos é impingida, nos cai de cima, independente de nossa vontade - geralmente quando somos ainda bebês. Que estranho, não? Algo extremamente importante em nossas vidas é decidido por outras pessoas. Falta alguma peça neste quebra-cabeça. Raça, religião e a tal da tradição. Tudo isso recebemos quando não podemos optar. E, depois, quando percebemos, as marcas já estão em nós. Aí, fica difícil optar. Quando tentamos, via de regra somos constrangidos, viramos traidores, ou, em alguns segmentos da vida, podemos até sofrer excomunhões - o que, para alguns, vem até como supremo alívio. E, num mundo que já teve Rousseau, Kant, Nietzsche e Sartre, ainda temos de perguntar a outros quem somos, ou quem devemos continuar a ser.

E, assim, ao cantar o hino nacional com cara de bravos, a plenos pulmões, o que estamos querendo dizer? Alguém sabe? "Que importa isso?", diria certamente o Galvão Bueno. O importante é ter festa na Paulista, depois do jogo. Mas, ouso pensar que as pessoas não conseguem nos explicar por que acham bonito e por que isso é "bom". Aceitaria tranquilamente os insultos e não ligaria se me chamassem de chato e mal-humorado se não entendesse que algo muito importante, e perigoso, está em jogo nessa brincadeira de "tremer pela pátria". Falando mais claramente, temo pela violência que possa estar sendo ensinada.

Não estou me referindo à violência no esporte, ou por causa do esporte. Brigar por futebol é uma doidice, mas creio que haja coisa pior. A meu ver, incutir a noção de pátria (ou nação) nas crianças, hoje, é um gesto, no mínimo, contraditório, para não dizer perverso. Sim, pois vivemos num mundo em que as noções de fronteira, distância ou cultura nacional já perderam, em muito, seu sentido. Nossos jovens, antes mesmo de saber cantar seu hino nacional, já conversam, jogam e interagem com pessoas do mundo todo. Palavras que designam situações ou coisas importantes para eles são aprendidas inicialmente, muitas vezes, num outro idioma que não o de seu país, ou o de seus pais. Antes mesmo de torcerem para os times de seu pai, muitas crianças já viram fanáticas por clubes europeus. Então, chamá-los para mostrar que possuem uma pátria acaba caindo como uma bomba sobre suas cabeças. De repente, sua culpa aponta para o fato de serem membros de um todo muito maior do que tudo o que já puderam perceber. Uma religião onde descobrem que foram, um dia, batizados; um sinal físico, traçado logo que nasceram, que os obriga "natural" e inexoravelmente a pertencer a um povo; um idioma (ou um dialeto que lhes foi ensinado) que os obrigará a odiar este ou aquele povo. Enquanto os sinais do mundo mostram que somos um espaço único em que podemos transitar sossegada e livremente, o dedo inquisidor vem nos lembrar que somos desta ou daquela pátria.

Em nosso país, não sentimos tanto essas diferenças e podemos até dizer que seja mínima a violência por causa da noção de pátria. Mas, pensemos em dois meninos fanáticos por futebol, um judeu e outro palestino, assistindo ao mesmo tempo aos times cantando seus hinos. As caretas dos jogadores, e os gritos quase desesperados, vão ensinar muito mais do que a necessidade de uma festa depois do jogo para ser filmada pela Globo. Estarão aprendendo que devem ser guerreiros de suas nações, de suas tradições. Que seu hino é um símbolo a ser sacralizado e honrado - e quase nunca se perguntam o porquê disto. E, na terra do samba, apesar da aparente calmaria, também se aprende a ter um amor cego pela pátria. Nada preocupante, por ora. Mas, saber é sempre saber. Fica guardado para o momento certo de ser usado.

A noção de pátria pode encerrar violência latente. Sim, pois dela advém o sentimento imbecil de "identidade nacional" - por favor, gostaria de saber para quê seria útil esta noção, além de gerar exclusão, segregação e certas unanimidades inexplicáveis - e dogmáticas. Pátria é o que justifica a formação de estados estruturados, não em direitos, mas em aspectos culturais ou religiosos.

Hinos gritados com gana e caras de raiva são como aulas de ódio em doses homeopáticas. Ódio ao diferente. Ódio que, enquanto meu time vence, fica camuflado e transforma-se em festa, mas que, quando vem acompanhado de derrota, acaba justificando batalhas campais imbecis - talvez o leitor nuca tenha tido notícias disto, mas que existe, existe. Ódio que nos há de acompanhar adormecido até o momento em que a diferença tiver de ser digerida. Ódio que nos faz não gostar de alguém apenas pelo seu sotaque, traço físico ou idioma. Ódio que leva crianças a tratarem mal os estrangeiros que vêm estudar em sua escola. Ódio que justifica o desprezo e a perseguição.

Pode ser que o caro leitor tenha ficado decepcionado comigo. Posso estar sendo chamado, agora de estraga-prazeres ou coisa assim. Que direito eu tenho de invalidar as doces lágrimas emocionadas do momento dos hinos? Peço perdão àqueles que estou ofendendo ou magoando. É que sou uma pessoa preocupada com aquilo que não se vê claramente, aquilo que pode estar escondido. Afinal, as armadilhas eficazes são as que não se revelam até que o momento em que nos capturam. Para aqueles que discordam radicalmente de minhas palavras, bom jogo! Bom hino!  Para quem se interessou minimamente pelo tema, no momento dos hino, experimente baixar o volume do som da TV. E faça um exercício literário de criar uma narrativa para essas imagens. Depois, caso saia bom, publique seu texto. A copa já terá acabado e, talvez, só encontre patrocinadores interessados em editar textos de epopeias ou guerras santas.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Pobres da noite


Perto das horas mais longas

os passos errantes de meu sol

explodem pálidos e tísicos

gemidos

assertivas

divindades esguias

desfiguradas da história . . .

escombros da espera.

 

Longe dos dias mais leves

as finas pobres cordas

de óperas sombrias (outras)

acenam

bocejam

pobres da noite a invadir

perdidas de tanto sonho

esquecidas . . .

quinta-feira, 1 de maio de 2014

DIA DO TRABALHO


Primeiro de maio!

Na janela do feriado,

quem precisa de TV

ou Ipad,

luzes inventadas,

promessas de vida melhor . . .

Brota um sol esfumaçado,

do quadrado eloquente

da manhã quieta

e despretensiosa. Vida, quase . . .

Corpos e energias a se misturar

com paredes, cimento, desejos,

risos e sonhos, professados, ou inconfessos.

Movimento!

Dança metafísica ou mera contingência . . .

Mundo a se fazer

como sempre,

"desde sempre".

Homens quase invisíveis,

que se desvelam como massa,

operários a se enroscar

no ballet da história,

velha coreografia do rico,

vasto e livre mundo.

Mais um prédio a ser gestado,

mais vidas, dramas

e mais vidas . . .

mais história a se escrever.

Homens quebram

e reconstroem

a cidade e o cenário,

o novo sol que entrará, em breve,

pela janela que hoje os mostra,

vigorosos.

O velho e novo

(e sempre) palco das labutas nossas

de todos os dias.

O sistema, as finanças,

o alimento frio

ou a iguaria nobre.

Homens de carne e ossos

a verter seu valioso

e insignificante suor,

velha seiva que dá vida a tudo

e a todos.

Festejam, sem querer pompa,

a tardia esperança de viver

sem saber por quê.

Inventam razões entre tantas razões,

só porque seu sangue quer pulsar

e seu dia é sagrado.

Virtuosos, talentosos,

que desdenhamos

atentos ao dia,

feriado,

festa de mais uma invenção

ou tolice humana.

Não percebem aplausos,

nem apupos.

Só querem viver,

fazer parte,

criar plataformas novas

para outros (novos e antigos)

movimentos.

Espetáculo gratuito

a chegar-me aos olhos

e fazê-los verter outras águas,

mais vazias e tristes que seu suor,

afinal, sou apenas espectador,

eles são os astros.

Não vou aplaudi-los;

não vão me ouvir.

Ou, talvez, não seja eu

crítico avalizado

para arte tão confusa . . . ou sublime, sei lá!

Um café se torna brinde

ou droga . . .

Que triste é não saber os porquês . . .

E fecho a janela,

(que mais?)

pois quero mesmo é poder descansar.

Hoje é meu dia!

 

João Luiz Muzinatti  01 de maio de 2014

 

domingo, 9 de março de 2014

ERRADO É CERTO


Dia desses, por causa das chuvas, e principalmente pela falta de planejamento nos últimos (quatrocentos e sessenta) anos em São Paulo, acabei parando num barzinho justamente no momento em que deveria já estar chegando em casa. Ao invés de ficar sem andar mais uma hora num mesmo quarteirão do centro da cidade, decidi parar o carro e estacionar, também eu, num lugar muito aconchegante e tranquilo de Santa Cecília. Apesar da imensa quantidade de água que caia, a noite não se abalava e era possível sentir um pouco do antigo charme com que fui seduzido, trinta anos atrás, quando cheguei, caipira e idealista, nesta inexplicável mistura de dor e romantismo. Sentei-me numa mesinha do lado de fora - na calçada - do bar e pedi um daqueles maravilhosos sanduiches que misturam de tudo, o qual certamente deve estar nos índex de todas as alas ortodoxas de qualquer religião. Delícia! Paz! Quer dizer, quase . . .

O problema é que, com tantas águas a rolar, os trovões eram inevitáveis. Águas tormentosas, raios violentos. Noite a despejar romantismo, mas, nem por isso, imune à contundência das descargas elétricas irrompendo por todas as partes. E, mesmo já possuindo um treinamento de mais de meio século na arte da convivência com temporais, fui atingido de surpresa por raios enviesados, de alta tensão e contumacíssimos. E o pior de tudo: vindos da mesa ao meu lado.

"Errado é certo", dizia firmemente um senhor de seus cinquenta anos a um outro, bem mais velho, que estava em uma outra mesa. Ambos sozinhos, acabaram se encontrando e iniciando um diálogo que acabava sendo compartilhado com muitos de nós que ali estávamos. Mas, que história era aquela de "errado é certo"?

Aos poucos, atento que estava a todas as manifestações elétrico-explosivas da noite, fui entendendo o teor da conversa e, obviamente, a estrutura conceitual daquela frase. Observando, um pouco mais, as demais mesas do estabelecimento, orientado principalmente pelos gestos acusatórios dos dois, acabei entendendo o que acontecia. Aqueles dizeres, que acabaram se tornando um mantra por conta das inúmeras repetições ao longo do diálogo, tinham como endereço uma outra mesa.  Mais distante de todos nós, estavam cinco garotas numa conversa animada e totalmente descontraída. E, de que diabos falavam? Por que eram o alvo, afinal?

Na verdade, não se sabia do que poderiam estar falando, dada a distância entre nós e elas. E de que podem conversar jovens de seus 20 anos? Roupas, filmes, baladas, garotos, garotas . . . O problema não era a temática de sua conversa. O problema eram elas. Ficava quase que evidente, por conta dos cabelos com corte masculino de duas delas, das roupas mais despojadas e das mãos unidas de outras duas, que seriam, quase todas senão todas, homossexuais. Sim! Estavam sendo alvo de duas metralhadoras implacáveis pelo simples fato de provavelmente não serem garotas heterossexuais.

"Antigamente, não havia disto", dizia o mais jovem, enquanto sorvia um refrigerante light em lata. "Se você diz isso, imagine eu que já estou com 67 . . .", emendava o outro. E continuava: "aqui perto, havia um restaurante onde elas se encontravam e não incomodavam ninguém. Sabíamos que existiam, mas não precisávamos ficar perto delas. As famílias iam aos lugares públicos sem serem agredidas. Mas, hoje, está tudo diferente: tudo liberado. O respeito ficou para trás".

"É isso! Errado é certo! Tudo está invertido. É a natureza ao contrário. Não sei aonde vamos parar!", continuava o sujeito que devia ter quase a minha idade. E, quase que em tom de manifesto humanitário e redentor, sacramentou: "já estou perdendo a minha paciência! Meu tempo de ser bonzinho já está se esgotando!"

O que estaria querendo dizer com isto? Era uma ameaça às moças - que, felizmente, nem sabiam que estavam gerando tanta ira e virulência - ou a todos nós que estávamos ali, e que nem teríamos notado a presença delas, não fossem os dois? Represália à nossa insensibilidade? Seria um manifesto de combate e repúdio à tal sociedade que, a seu ver, distorce e inverte os valores? Um apelo "democrático" por uma sociedade mais justa, na qual o direito de não conviver com os diferentes seria respeitado e priorizado? Talvez uma composição de tudo isso: um solene basta a tudo aquilo que se contrapõe às velhas certezas e aos absolutos que sempre tornaram a vida mais segura e suave de ser vivida - pelo menos, para grande parte das pessoas.

No meu canto, entre solidário às ingênuas meninas - que pareciam ignorar sua condição de ameaça iminente à sobriedade civil - e confuso ante as ameaças do imponente guardião da moral, comia já sem gosto e pensava em tantos alunos (que já tivera) e em meus filhos, andarilhos da vida. O que estaria sendo reservado para eles? Estariam seguros, hoje e nos próximos meses e anos? Não conseguia parar de pensar nas histórias dos anos sessenta, trinta . . . Na "marcha da família com Deus pela liberdade", nos clamores por ordem, nas ameaças comunistas e nas tantas "democracias ao nosso modo", que tingiram de tristeza tanto tempo de nossa história.

Não pude deixar de pensar que aquelas falas não estavam só ali. Já ouvira similares em festinhas de três anos, em clássicos no Pacaembu, em rodas de amigos num bar qualquer da vila Madalena, conversas do facebook e - nem quero pensar muito -  em sala de professores. Que diabos será isso? A história vai e volta, vai e volta? Ou são novas farsas que nos enganam a mente, a todo instante, se travestindo de antigas tragédias revividas e vívidas? Quem seriam aqueles sujeitos? Espécimes raros, a serem levados para acervo de algum museu, ou novos arautos de velhas verdades insepultas que continuam a se impor e a encantar? Certamente, aquelas vozes e suas ideias não eram só deles. Talvez, eu tenha sido um dos poucos, ou talvez o único, a se incomodar com aquela conversa.

Quando saí dali, não disse nada a eles. Afinal, falavam entre si. Não estavam incomodando. Caso os molestasse, poderia até ser autuado por injúria ou coisa que o valha. E nem havia o que lhes falar. Afinal, estavam apenas formatando o mundo que percebem, e, com a melhor das intenções, querendo alguma paz, algum direito, sei lá. Ao passar pelas moças, seus risos me acalmaram, e a vida parece ter brilhado em algum ponto, por ali. Não sei se estava no próprio brilho ingênuo e festeiro de seus sorrisos adolescentes. Ou, quem sabe, num sonho impossível qualquer, próprio do jovem, que sempre insiste em se dizer possível. Com tanto absurdo, estava quase em paz. Uma paz diferente: triste, mas arejada. Algo meio fora dos padrões. Talvez fosse o "errado que se fazia certo", sei lá...

João Luiz Muzinatti


 

 


 

 

 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O TREM

Lembro-me de que, desde muito jovem, costumava observar o trem surgindo a distância. Na cidadezinha onde vivia, havia uma visão privilegiada. Ao longe, avistava a composição gigantesca apontando no vão formado entre a vasta vegetação e uma longa montanha. E meu mundo parecia parar.
Timidamente, aparentando andar bem devagar, a locomotiva azul invadia a paisagem paralisada e seguia seu curso já conhecido, deslizando sobre os trilhos reluzentes e compondo uma obra sóbria mas eloquente. Um regalo gratuito ofertado pelas saudosas manhãs de outono. Aparecia, exibia sua imponência e beleza de deus olímpico e logo desaparecia por detrás da montanha.
Os longos vagões a seguiam, percorrendo o trajeto demarcado, e também logo sumiam, como a se esconder de mim. Fugiam da cena e me cortavam a respiração. Meu coração, de tão ávido, agora ficava apertado. Iniciava-se um intervalo com sabor de angústia, um prazer estranho . . . Um aperitivo do que a vida me traria tantas outras vezes, mais tarde, das formas mais inesperadas e até dramáticas. Impossível descrever.
Nesse instante, meus olhos corriam para o outro lado da tela. A montanha se estendia até a outra parte da cidade e era possível ver os trilhos brotando das pedras. De lá, esperava pelo renascimento daquele titã magnífico que me trazia gozo e temor. Alguns instantes - menos que um minuto - pareciam durar muito tempo. Uma odisseia particular. Um conto livre e aberto.
E pensava no que poderia estar acontecendo ali. Pessoas sentadas, gente andando, maquinistas, guardas ferroviários. Todos tornavam-se, de repente, personagens eventuais da minha narrativa secreta. A pequena história que haveria de trazê-lo à outra extremidade do meu quadro vivo.
Poderia não aparecer, caso algum comando errado o fizesse descarrilar. Talvez parasse simplesmente. Por que não? O que era certo, de fato? A chegada ao outro lado era tão inevitável quanto o sonho mais banal, mas havia naquele pedaço de mundo um recorte da vida real, onde eu já desconfiava que nada era absolutamente garantido.
E, de repente, sempre parecendo ser a primeira vez, meu coração contido se soltava e voltava à vida. Agora mais feliz, pois o gigante vencera as incertezas e os perigos da estrada,  e me acenava vitorioso. O herói cumprira mais uma vez o seu papel. O desequilíbrio se acabava e o mundo parecia voltar à normalidade. A máquina azul seguia a conduzir seu séquito, marchando novamente pelo cenário preciso que meu olhar captava e inventava.
Alguns metros após passar pela abertura na montanha, a locomotiva impávida me brindava com seu grito de vitória. Dois apitos estridentes e mágicos avisavam a gente da estação que estava chegando. Os personagens da minha epopeia certamente já estariam desfrutando de mais um daqueles momentos de folga vitoriosa que os finais felizes costumam trazer.
A mim, soava como a doce confirmação de que a vida continuava e o jogo diário da ousadia de querer vencer o obscuro valia a pena. O coração tinha mesmo de ficar apertado, pois o que vinha depois era sublime. Era a confirmação inequívoca de que os sabores  são sempre mais intensos para quem vive ávido e faminto de prazer.
E o trem desfilava, agora mais vagarosamente, aos poucos se acomodando na estação. De longe, sem pensar em mais nada, só queria mesmo poder voltar à rotina do meu dia. E a realidade, alimentada pelo sonho de um minuto, voltava a ter graça. Voltava a ser possível.