Manhã
de domingo! Um café na padaria, como acontece quase sempre. Depois, contrariando
prescrição médica, um cigarro, enquanto penso no que poderá ser o domingo e a
semana que se iniciam. Sentado num degrau do estacionamento, leio artigos do
jornal de domingo. E praticamente todos me mostram um panorama sombrio. Marielle Franco é o foco das matérias;
e não poderia mesmo ser diferente. Afinal, até mesmo o mais pessimista entre nós
não pensaria, há uma semana, que um assassinato tão brutal viesse a acontecer. Um
crime violento justamente contra uma defensora de direitos dos mais humildes,
além de ser uma voz eloquente contra os abusos do poder (institucional ou não).
Jânio
de Freitas, Hélio Gaspari e Ruy Castro
nos alertando para o que podemos resgatar na história mais ou menos recente de
nosso país: cenas parecidas, correlatas e com a mesma sinalização deste
assassinato brutal. Vejo, também, Hélio Schwartsman discutindo se as conquistas
iluministas nos trouxeram de fato vida melhor. E, para coroar essa coletânea de
indagações mais do que oportunas – porém tristes - a desafiar o lindo dia que
começa, o querido Antonio Prata a dizer que, apesar de seu ofício ser a crônica,
uma forma de “instalar sorrisos no
canto da boca e não a liberação de gritos engasgados na garganta”, hoje é
diferente. Sim, pois, hoje é “um destes dias em que perco a batalha, em que a
busca pela delicadeza é pisoteada pelo mamute da revolta”.
Não
sei o que penso. Minutos antes, discutia – por whatssap - com uma amiga que
vive num país muito distante sobre ter ou não fé na profissão (que abraço há
mais de 37 anos) de professor. Terá valido a pena? Que ânimos podem me fazer
continuar? Como driblar o desalento e recolher forças para continuar a fazer a única
coisa que acho que sei fazer? E, principalmente, como encontrar (ou construir
novas) forças para continuar neste percurso? Afinal, sinto que já vi este filme
antes. E já o estudei muito, nos textos de História do Brasil, quando procurei
saber o que acontecera antes de me dar conta de mim. E, como sei que acontece
com a maioria das pessoas que valorizam a vida, minha tarefa aqui é encontrar,
sim, paliativos ou visões ideais que possam me fazer viver mais ... (Aqui, quis
colocar complementos, adjetivos, advérbios ... mas sinto que a frase fará também
grande sentido se terminar somente com o “mais”.)
De
repente, um senhor, a quem apresento como Carlos S., me saúda e inicia um papo
rápido. Dizendo ter 82 anos de idade, afirma que viveu os bons tempos desta
cidade. Há 60 anos, relata, chegou de Portugal e se instalou bem aqui no
bairro. Diz ter iniciado um empreendimento que se fez vitorioso. Que sua vida
seguiu o rumo da grandeza que era o nosso país, o qual oferecia condições a
todos os que quisessem viver em paz, e com uma certa dignidade. Mas, lamenta -
com toda a sinceridade que uma atitude descontraída pode nos assegurar – o rumo
que as coisas tomaram.
“Hoje”
– afirma, com ar sério – “a violência tomou conta deste país. As coisas estão
sempre piorando; não sei onde isso vai parar”. Em sua fala, um lamento sincero
de quem tem filhos, netos e (pode ser) até bisnetos. A fala de quem gostaria
que tudo fosse diferente. Ou, ao menos, que as coisas não houvessem
degringolado como aconteceu. O lamento emblemático de um estrangeiro que se
tornou até mais brasileiro do que muitos de nós. Uma fala contundente que me dá
argumentos suficientes, dentro da minha reflexão eventual, para que eu abandone
tudo e vá criar galinhas no interior. Penso, então: “este homem está me dizendo
para desistir. É isto”! Porém, quase ao se despedir, pergunta o que faço e se
encanta ao saber que dou aulas de filosofia, e que tenho grupos de alunos por
Skype.
“O
senhor dá aulas à distância? Que bom! Gostaria de participar! Mas, preciso de
alguém que me ensine direito como operar o computador. Sabe como são as coisas:
na minha idade é mais complicado”. E
deixa um recado no ar, enquanto recebe o meu cartão: “é preciso aprender como
funciona este mundo; se não, as coisas ficarão cada vez mais complicadas para
todos nós”. Depois, despede-se, acompanhado pela simpática esposa que acaba de
chegar, e garante que vai me ligar. Parte sorridente e me deixa perplexo. Mais
que isto, admirado.
Em
nenhum momento valoriza minha ideia de ir para o interior criar galinhas ou
porcos – a única tecnologia que domino razoavelmente, a ponto de iniciar “vida
nova”. Pelo contrário, me ensina docemente: “as coisas estão do mesmo jeito em
toda parte: tudo precisa ser diferente, em qualquer lugar”.
Minha
cabeça, feito turbilhão, dá voltas e parece alternar voos estratosféricos com caminhadas
lentas e suaves pela relva inocente. Não sei mais o que pensar. De repente, me
olho e encontro um vazio. Estou oco ... Sem parâmetros, sem nenhuma certeza,
sem nada. Meu futuro? Que futuro? E fico pensando que aquele homem talvez seja
um sonho que me acomete acordado. Pode ser um embusteiro a fim de me confundir
... Ou, ouso pensar com um “riso no canto da boca”: “talvez seja a alma do
Sartre que resolveu vir brincar comigo e dizer, pela boca do velhinho, que ‘não
importa o que nos fizeram: seremos aquilo que fizermos com o que foi feito de nós’”.
Olho
para o meu bolso e percebo que os cigarros acabaram. Meu bolso também está
vazio. E parto para o carro, sem nada mais na mente. Só a certeza de que este
encontro eventual me despiu, me lavou ... e me trouxe de volta ao velho nada. Bora
preencher isto, então! Mas, como? De que jeito? Acho que vou voltar à padaria e
comprar outro maço de cigarros.
João
Luiz Muzinatti
18 03
2018